Maurice MERLEAU-PONTY
(Susana Viegas)



I. APRESENTAÇÃO

II. TESES ESSENCIAIS

III. TEXTO

IV. BIBLIOGRAFIA

V. LIGAÇÕES



I. APRESENTAÇÃO


Filósofo francês, nasce em Rochefort-sur-Mer, a 14 de Março de 1908, e morre em Paris, a 3 de Maio de 1961. Fenomenólogo existencialista influenciado pelo pensamento de Martin Heidegger, pela fenomenologia transcendental de Edmund Husserl e pela Teoria Gestalt, formou-se, em 1931, em Filosofia na École Normal Supérieur de Paris. Em 1945 obtém o grau de doutor e lecciona na Universidade de Lyon até 1949, ano em que é convidado para a cátedra de Psicologia Infantil na Sorbonne. Fundou, em 1945, a revista política e literária Les Temps Modernes, juntamente com Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Se inicialmente partilha os ideais marxista de Sartre, a amizade chega ao fim com o adensar das críticas de Merleau-Ponty, não só ao marxismo de Sartre, mas, principalmente, ao existencialismo sartriano,  uma ontologia dualista de base cartesiana, segundo Merleau-Ponty.

A principal obra de Merleau-Ponty, La phénoménologie de la perception, é publicada em 1945, no mesmo ano em que, a 13 de Março, profere a conferência “Le cinéma et la nouvelle psychologie” (posteriormente publicada em Sens et Non-Sens, 1966). Esta coincidência temporal permite compreender melhor a importância do cinema na filosofia de Merleau-Ponty mostrando que este reflectiu sobre o cinema enquanto escrevia La phénoménologie de la perception tornando evidente que, os dois temas, cinema e percepção, estão inegavelmente ligados: “o cinema está particularmente apto a manifestar a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e a expressão de um no outro. Eis porque não é surpreendente que a crítica possa evocar a filosofia a propósito de um filme”(1966: 105).

No entanto, a reflexão sobre as artes em Merleau-Ponty está imediatamente associada à pintura, principalmente a Le doute de Cézanne e a L’œil et l’esprit, textos dedicados exclusivamente à pintura ainda que a escultura, o teatro ou o cinema surjam como contrapontos argumentativos. Este destaque dado à pintura surge no pensamento de Merleau-Ponty como momento mais tardio no seu pensamento em que se afasta da reflexão sobre a percepção para se aproximar mais de uma reflexão sobre a própria visão e, neste aspecto, a pintura em geral e a de Cézanne em particular, são essenciais para esse projecto. Quanto ao cinema, surgem já algumas referências em La phénoménologie de la perception (principalmente quando refere o movimento cinematográfico em Henri Bergson) mas vai ganhando mais destaque no seu pensamento com a conferência de 1945, “Le cinéma et la nouvelle psychologie”, no capítulo “L'art et le monde perçu” de Causeries (1948) e nas aulas de estética de 1952/1953 (Résumés de cours. Collège de France, 1952-1960).

Tendo em conta a imediata ligação que fazemos entre o pensamento da arte em Merleau-Ponty e a pintura, como entender a importância e o interesse que o cinema teve na sua filosofia? Stefan Kristensen, em “Maurice Merleau-Ponty, une esthétique du mouvement”, defende que “Merleau-Ponty tinha uma abordagem cinematográfica às artes visuais em geral e que, se a pintura é, na verdade, a linguagem que mostra a génese da nossa relação com o mundo, o cinema é aquela que torna visível o invisível das nossas relações com o outro”[1]. Tanto a pintura como o cinema mostram a dialéctica entre visível e invisível permitindo entender o processo de tornar visível o invisível mas, ao contrário da pintura, valorizada principalmente por mostrar o invisível do mundo ou das coisas, o cinema permite mostrar o invisível da existência humana, mostrar a relação com os outros e, neste sentido, unicamente no cinema a estética devém ética, intersubjectividade[2].

Da redução fenomenológica, levada a cabo em La phénoménologie de la perception, resulta a afirmação de que o corpo e o mundo coexistem numa ambiguidade irresolúvel, isto é, apenas nos conhecemos na nossa inerência no mundo de uma forma ambígua, estar-no-mundo como viver-no-mundo, e o cinema é, neste caso, exemplar. Através do cinema, há um reenvio do olhar que vê (vidente) a si próprio enquanto visível, permitindo compreender, por um lado, que o mundo em si e para mim é um só, e, por outro lado, que é uma possibilidade de aproximação ao outro tal como ele é em si, diminuindo a distância entre vidente e visível. 


[1] Kristensen, Stefan. Maurice Merleau-Ponty, une esthétique du mouvement. Archives de Philosophie, 69 (1) (Printemps 2006), pág 123.

[2] Op.cit., pág.135.



II. TESES ESSENCIAIS


Tendo em conta as pontuais referências e a falta de uma obra maior sobre o cinema nos textos de Maurice Merleau-Ponty, segue-se uma análise da conferência “Le cinéma et la nouvelle psychologie” proferida a 13 de Março de 1945 (L'Institut des Hautes Etudes Cinématographiques) e de Le visible et l'invisible, o seu último livro escrito que permanece inacabado. Grande parte dos filósofos contemporâneos à era cinematográfica não compreenderam o cinema como um elemento filosófico autónomo e digno de investigação e, tal como aponta criticamente Gilles Deleuze, “é muito curioso que Sartre, em L'Imaginaire, encare todos os tipos de imagens, excepto a imagem cinematográfica. Merleau-Ponty interessava-se pelo cinema, mas para o confrontar com as condições gerais da percepção e do comportamento. A situação de Bergson, em Matière et mémoire, é única”[1]. Podemos destacar na filosofia de Merleau-Ponty quatro ideias-chave sobre o cinema, influenciadas, em grande parte, pela Gestalt, por Malraux e Leenhardt, a saber: a ligação inegável entre a percepção e o cinema em que este é um objecto percepcionado exemplar; a relação única entre visível e invisível; a reversibilidade entre vidente e visível; e, por último, o filme como forma temporal que só a si mesmo remete.


[1] Deleuze .Conversações, trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Fim de Século, 2003, pág.73.


1. Estudos sobre percepção e cinema

A Gestalt é a grande influência da apresentação que Maurice Merleau-Ponty faz do cinema e, por isso, começa por distinguir a psicologia clássica da teoria Gestalt através da análise da percepção do mundo segundo exemplos concretos da audição e visão. Nas notas de trabalho de Le visible et l'invisible Merleau-Ponty pergunta: ”O que é a Gestalt? Um todo que não se reduz à soma das partes, definição negativa, exterior. (...) O meu corpo é uma Gestalt e está co-presente em toda a Gestalt. Ele é uma Gestalt; também ele é eminentemente significação pesada, é carne”[1]. De acordo com a psicologia clássica, compreendemos os dados da percepção reunindo ou reorganizando as diversas partes, o mosaico do qual é feito o campo perceptivo. Contrariamente a esta teoria, analítica e intelectual, do homem face ao mundo e aos outros, a psicologia Gestalt ou formal afirma a percepção do todo como forma global de abertura do estar-já-no-mundo. Neste sentido, a percepção é imediata e sintética porque estamos, inevitavelmente, imersos no mundo; para Merleau-Ponty, estar-no-mundo é viver-no-mundo. A percepção natural distingue-se da percepção analítica por não separar os elementos, por não constituir um mosaico de dados justapostos, antes afirmando a constituição de um sistema de configurações do Todo, da forma sobre o fundo.

Retomando um exemplo já clássico em Edmund Husserl (Meditações Cartesianas), Merleau-Ponty analisa a percepção de um cubo. Ao observarmos um cubo não percepcionamos, de cada vez, todos os lados para construir um todo, mas percepcionamos, de um só golpe, o todo não duvidando da existência do que está fora do campo de visão, a parte de trás, a base e o topo, ou cada um dos vértices. Graças à capacidade de antecipação, não notamos as deformações dos dados percepcionados, o fundo entre a forma, o  próximo e o afastado, porque simplesmente vemos um cubo. “Em vez de as corrigir, nem sequer reparo nas deformações da perspectiva, quando vejo, vejo o próprio cubo na sua evidência”(1966: 91-92).

Merleau-Ponty refere ainda que as análises de um objecto em geral aplicam-se igualmente ao cinema enquanto este é um objecto a percepcionar e não a pensar: “quando percepciono, não penso o mundo, ele organiza-se perante mim”(1966: 91) ou “é através da percepção que podemos compreender a significação do cinema: não se pensa o filme, percepciona-se”(1966: 104). Mas, o inverso também poderá ser evidenciado uma vez que as análises que a psicologia faz sobre o acto de percepcionar no cinema, da relação entre o espectador e as imagens projectadas, aplicam-se igualmente à percepção do mundo e dos outros em geral. Tal como na percepção de um cubo, também na percepção de um filme aprendemos a compreender a mudança de cenário, a sobreposição de objectos, o desaparecimento do campo de visão, etc., porque a nossa percepção não está, temporalmente, fechada no instante presente. O filme é percepcionado como um todo temporal. Neste sentido, estas análises de Merleau-Ponty são da maior importância pois permitem compreender o cinema como a arte de tornar visíveis objectos e comportamentos. No limite, há um aspecto cinematográfico na própria realidade, há um modelo de compreensão psicológico e filosófico que lhes é comum.

Tal como Gilles Deleuze, também Merleau-Ponty começa por uma leitura de Henri Bergson relativamente à questão do movimento ainda em La phénoménologie de la perception (pp 319-320, nota de rodapé). Se podemos afirmar que há uma viragem no pensamento filosófico de Merleau-Ponty da fenomenologia da percepção para uma reflexão da visão com os estudos sobre pintura, também é legítimo afirmar que o cinema se destaca como objecto analisado conciliador dos dois projectos contribuindo, positivamente, tanto para a reflexão sobre a percepção como para a reflexão sobre a visão. 


[1] Le visible et l’invisible, Paris, Éditions Gallimard, 2006, pág 255.


2. Tornar visível o invisível

Se o interesse pela pintura tem como base o modo como apresenta os objectos, o interesse de Merleau-Ponty pelo cinema, enquanto objecto percepcionado, baseia-se no seu contributo para a fenomenologia da percepção e do olhar e também na possibilidade de uma aproximação aos outros, à intersubjectividade. Em Le visible et l'invisible, nas notas de trabalho, Merleau-Ponty afirma: “O sentido é invisível mas o invisível não é o oposto do visível: o próprio visível tem uma membrura invisível.”[1]. Habitualmente, não notamos nas deformações de perspectiva ou na sobreposição de objectos porque as corrigimos automaticamente (por exemplo, lemos correctamente uma palavra que esteja mal escrita). No cinema, esta situação, em que o espectador compreende de um modo excessivo aos dados dos sentidos, será da maior importância: “o filme não se pensa, percepciona-se”, ou seja, tal como no sistema de configuração da percepção em que o todo antecede as partes, também o cinema é percepcionado como um todo; som, imagem, diálogo, música e montagem são um todo, uma forma temporal.

Que relação existe entre o corpo que percepciona e o outro que é percepcionado? Em Le visible et l'invisible podemos ler que “há uma experiência da coisa visível como preexistente à minha visão mas não é fusão, coincidência: porque os meus olhos que vêm, as minhas mãos que tocam, podem também ser vistos e tocadas, (...) o mundo e eu somos um no outro e não há anterioridade do percipere ao percipi, há simultaneidade”[2]. Merleau-Ponty afirma a indivisão entre o que olha e o que é olhado, entre o que sente e é sentido: “o cinema está particularmente apto a manifestar a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e a expressão de um no outro”(1966: 105). O olhar de quem percepciona torna-se um olhar cinematográfico, um olhar que coincide e co-existe com o próprio filme; o vidente coexiste com o visível. No cinema, o olhar é reenviado a si próprio como olhar visível. Por este motivo, o potencial filosófico do cinema será o de mostrar de que modo estamos imersos no mundo e nos outros, de que modo a própria intencionalidade se manifesta e se torna visível através da técnica cinematográfica. 

Citando Goethe, ”o que está no interior, também está no exterior”(1966: 106), Merleau-Ponty reafirma que o interior invisível se mostra no exterior visível e, neste sentido, o cinema tem o poder de mostrar o interior do corpo vivido através do exterior do corpo visto tal como acontece nas emoções representadas pelos actores e visíveis nos seus gestos e posturas. O poder do cinema está precisamente nesta capacidade de unir espírito e corpo, espírito e mundo e a reversibilidade expressiva de um no outro (1966:105). O exterior dos corpos, não só a carne, mas principalmente os comportamentos e gestos, são uma manifestação de uma consciência intencional, de uma consciência que toca as coisas e os outros. Deste modo, o cinema consegue a paradoxal relação entre o olhar que vê e o olhar que é visto conseguindo uma aproximação ao outro: podemos aceder aos outros através do seu comportamento, exteriorização visível da sua consciência intencional. O cinema é para Merleau-Ponty, essencialmente, um instrumento técnico de comunicação, uma forma de expressão e partilha de emoções e pensamentos. Mas esta relação não é transparente. O que será o ponto de vista do outro? Por exemplo, como desenvolve Vivian Sobchack em The Address of the Eye: A Phenomenology of Film Experience, no cinema o ponto de vista da câmara não se confunde, nem com o ponto de vista do realizador, nem do espectador porque, essas imagens a que acedemos são uma perspectiva indirecta de um olhar automático e humanizado. Há, na verdade, uma tendência na fenomenologia do cinema para antropomorfizar o olhar da câmara, facto a que não fica indiferente Sobchack que desenvolve em The Address of the Eye a questão da analogia do cinema com a subjectividade humana.

A comunicação cinematográfica é o modelo do tipo de comunicação ou expressão que mais nos pode aproximar do outro: há um acesso, ainda que  indirecto, do poderá pensar ou sentir. De qualquer modo, o facto de o exterior revelar o interior é uma afirmação incontornável para se compreender, por exemplo, o impacto do grande plano de um rosto no cinema. Por exemplo, Deleuze irá falar da construção do corpo do actor da nouvelle vague, não só como expressão visível, mas também audível. Basta ter em conta a surpresa inicial dos espectadores perante estes recortes corporais aumentados. Mas, o eu vidente, também ele visível, torna o cinema a base reflexiva para uma intersubjectividade em que ver é ser visto, o interior é exterior e vice-versa. 


[1] Le visible et l’invisible, pág.265; e novamente a questão vidente-visível pág.209.

[2] Pág.162.


3. Reversibilidade entre ver e ser visto

Diz Merleau-Ponty que “eu, o vidente, sou também visível”[1]. Merleau-Ponty utiliza o termo quiasmo (chiasme) para se referir a esta relação de cruzamento ou reversibilidade não-dialéctica entre o ver e visto, o tocar e o tocado, o falar e falado e que na Phénoménologie de la perception surge como estrutura ontológica da oposição reversível de sujeito-objecto, interior-exterior. É o cruzamento ou encontro do olhar em que me vejo do exterior, “é preciso que aquele que vê não seja ele próprio estrangeiro ao mundo que vê”[2].

A reversibilidade é a última verdade: o recruzamento entre o que toca e o tangível, entre o vidente e o visível. É um mecanismo de reversibilidade que mostra o impedimento de identificação simultânea dos dois estados, passivo e activo, ver e ser ouvido porque nessa experiência há sempre um hiato ou uma distância (écart) entre o olhar que vê e se compreende visto. No exemplo de Merleau-Ponty, a mão direita que toca na mão esquerda não pode ser tocada uma vez que ao ser activa não pode, simultaneamente, ser passiva porque, ao ser tocada, a mão direita não é um objecto mas a reversibilidade reflexiva do seu toque. A arte, principalmente o cinema, é o local de encontro do outro e de si próprio, é intersubjectividade porque o olhar tem a capacidade táctil de envolver o mundo e os outros, de tocar o visível. A reversibilidade entre a expressão cinematográfica e a sua experiência significa que, no cinema, o acto de ver torna-se visível nesse processo que não é dialéctico mas simultâneo. No cinema, o espectador não só percepciona e compreende as experiências dos outros como, de um modo reflexivo, percepciona e compreende a sua própria percepção e compreensão. Trata-se de um quiasmo, um cruzamento entre a experiência directa, percepção imediata das experiências dos outros, e a experiência indirecta, percepção mediada pelas experiências dos outros.


[1] Le visible et l’invisible, pág.150.

[2] Le visible et l’invisible, pág 175, ver também pág.201.


4. O cinema como forma temporal

O cinema é uma forma temporal ou “unidade melódica” de imagem e som. Se, por um lado, o cinema é um exemplo concreto de tudo o que a nova psicologia Gestalt diz sobre a percepção em geral, por outro lado, a psicologia pode contribuir grandemente para a compreensão do que está em causa na percepção cinematográfica. Neste sentido, a conferência de Merleau-Ponty faz parte de um conjunto de estudos psicológicos sobre o cinema dos quais Hugo Münsterberg foi pioneiro. “Um filme não é uma soma de imagens mas uma forma temporal” (1966: 96) ou seja, é uma unidade temporal visual e sonora, o que leva Merleau-Ponty a referir as conhecidas experiências de Kuleshov nas quais o cineasta soviético, usando o mesmo grande plano de Mosjoukine, mas através da montagem de diferentes sequências, induz o espectador a ver, no seu rosto, diferentes emoções consoante a sucessão de imagens. De um plano neutro, sem nenhuma expressão como o rosto de Mosjoukine, é possível passar a interpretações opostas unicamente com a montagem: “O sentido de uma imagem depende, portanto, daquelas que a precedem no filme e a sua sucessão cria uma nova realidade que não é a simples soma dos elementos empregues” (1966: 97).

Na criação de um filme como forma temporal, não se trata de anexar som a imagens previamente captadas, ou o inverso, porque a relação entre os dois elementos é primordial: a relação assemelha-se, diz Merleau-Ponty, à de uma silhueta com a figura. Mas, qual a função de um filme? Merleau-Ponty defende a verosimilhança narrativa e o sincronismo imagem-som de um filme com a intenção de criar uma realidade totalmente nova, ou seja, se não fossem projectados numa tela, não teríamos oportunidade de presenciar esses factos na realidade. Citando Roger Leenhardt, o autor relembra que o realismo do filme (ou índices de realidade) resulta da verosimilhança de gestos, cenários, diálogos, etc., o que não significa que se aproxime da percepção dessa situação na realidade. O ponto de vista é, no cinema, automático, da câmara. Merleau-Ponty acaba por afirmar que um filme deve contar uma história por imagens e sons tal como o romance o faz pelas palavras, ou seja, é uma arte visual e narrativa e, como consequência, afirma que a função do cinema não será a de dar a conhecer ideias. Nada transcende o filme, nenhuma realidade é-lhe referencial porque não há uma realidade para lá da tela de projecção; só há um para cá onde se encontra o espectador no desdobramento do olhar vidente e visível. O que é próprio do filme é a sua visibilidade.


5. Conclusão: a arte do visível

Para concluir, podemos questionar a relevância do cinema para lá dos estudos sobre percepção de base psicológica quando se afirma que o cinema não permite conhecer ideias. Para Merleau-Ponty, o interesse do cinema reside na sua percepção, no facto de mostrar directamente atitudes e gestos humanos, modos de estar no mundo, modos de lidar com o outro e com as próprias coisas, uma vez que os estados emotivos são, tanto no cinema como na nova psicologia, atitudes e comportamentos.

Ao mostrar a interioridade através das expressões exteriores, os comportamentos ou gestos, o cinema é exemplar a mostrar a importância da nova psicologia para a filosofia fenomenológica. Ou seja, a nova psicologia tal como a filosofia contemporânea e o cinema, representam o fim do dualismo tradicional entre sujeito e objecto, já presente em La phénoménologie de la perception, mostrando, não a cisão espírito e mundo, mas a consciência lançada no mundo. O cinema está particularmente apto para mostrar a unidade reversível entre espírito e corpo e a mútua expressão de um no outro e este factor é decisivo na escolha do cinema como ilustração das ideias de Merleau-Ponty (ainda que, paradoxalmente, ele diga que o cinema não dá a conhecer ideias). Com Maurice Merleau-Ponty, o cinema e a filosofia do sensível permanecem inseparáveis: “o cinema está particularmente apto a manifestar a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e a expressão de um no outro. Eis porque não é surpreendente que a crítica possa evocar a filosofia a propósito de um filme”(1966: 105).

No entanto, podemos notar que, por um lado, o texto é bastante redutor por não considerar a arte cinematográfica para lá da sua percepção como, por exemplo, objecto de conhecimento ou como veículo de ideias, e, por outro lado, a exposição da unidade imagem-som está desactualizada não dando conta de técnicas como o faux-raccord ou o flashback. É até paradoxal (porque contradiz o que afirma da pintura onde não é possível um manual deste tipo) que, em 1948, num texto lido na rádio e publicado em Causeries[1], Merleau-Ponty falasse de um manual para melhor entendermos o cinema afirmando mesmo que o que distingue o cinema das outras artes é o ritmo cinematográfico, e neste caso o manual serviria para compreendermos a escolha de planos e a planificação da sequência de planos. 


[1] Causeries, 1948, Paris, Éditions du Seuil, 2002, pp 57-58.



III. TEXTO


1. O Cinema e a Nova Psicologia [extracto final do texto]

(Conferência do dia 13 de Março de 1945 no Institut des Hautes Etudes Cinématographiques)

(...) Se agora considerarmos o filme como um objecto a percepcionar, podemos aplicar à percepção do filme tudo o que foi dito sobre a percepção em geral. E vamos ver que, deste ponto de vista, se esclarece a natureza e a significação do filme e que a nova psicologia nos conduz precisamente ao melhor dos estetas do cinema.

Em primeiro lugar, afirmamos que um filme não é uma soma de imagens mas uma forma temporal. É o momento indicado para referir a famosa experiência de Pudovkin[1] que evidencia a unidade melódica do filme. Um dia, Pudovkin pega num grande plano de Mosjoukine impassível e projecta-o, primeiro, precedido de um prato de sopa, em seguida, de uma jovem mulher morta no seu caixão e, por fim, de uma criança a brincar com o seu ursinho de peluche. Primeiro, apercebemo-nos que Mosjoukine olha o prato, a jovem mulher e a criança e, em seguida, que ele olhou para o prato com ar pensativo, para a mulher com tristeza e para a criança com um sorriso luminoso e o público ficou maravilhado com a diversidade das suas expressões quando na verdade, foi usado o mesmo olhar e era notavelmente inexpressivo. O sentido de uma imagem depende, portanto, daquelas que a precedem no filme e a sua sucessão cria uma nova realidade que não é a simples soma dos elementos empregues. R. Leenhardt[2] acrescentou, num artigo excelente[3], que faltava intervir a duração de cada imagem: a duração curta convém ao sorriso feliz, uma duração média a um rosto indiferente, uma duração longa para a expressão de pesar. A partir daqui, Leenhardt produz esta definição do ritmo cinematográfico: “uma tal ordem de olhares, e, para cada um destes olhares ou “planos”, uma duração tal, que o conjunto produza a impressão desejada com o máximo efeito”. Há por isso uma verdadeira métrica cinematográfica na qual a exigência é muito precisa e muito importante. “Ao verem um filme, tentem descobrir o instante onde uma imagem esteja plena; ela avança, ela deve acabar, ser substituída (seja mudança de ângulo, distância ou campo). Aprenderam a conhecer este mal-estar no peito que cria um olhar demasiado longo, “afrouxando” o movimento ou o delicioso consentimento íntimo, assim que um plano ”passa” exactamente...”(Leenhardt). Como acontece no filme, para além da selecção de pontos de vista (ou planos), da sua ordem ou da sua duração, que constitui a montagem, da selecção de cenas ou sequências, da sua ordem e da sua duração, que constitui o corte, o filme define-se como uma forma extremamente complexa no interior da qual numerosas acções e reacções acontecem a cada momento, onde as leis permanecem por descobrir e não foram até aqui senão descobertas pelo faro ou tacto do encenador que manuseia a linguagem cinematográfica como o linguista manuseia a sintaxe, sem o pensar directamente, e sem estar sempre em condições de formular as regras que observa espontaneamente.

Aquilo que acabámos de dizer sobre o filme visual também se aplica ao filme sonoro, que não é uma soma de palavras ou ruídos, mas também uma forma. Há um ritmo do som como da imagem. Há uma montagem de ruídos e de sons, da qual Leenhardt encontrou um exemplo num velho filme sonoro Broadway Melody[4]. “Estão em cena dois actores. Do alto das galerias, ouvimo-los declamar. Depois, imediatamente, grande plano, tom de sussurro, percebemos uma palavra que eles trocam em voz baixa...” A força expressiva desta montagem consiste naquilo que nos faz sentir a coexistência, a simultaneidade de vidas no mesmo mundo, dos actores para nós e para eles próprios, - como o exemplo referido da montagem visual de Poudovkine ligava o homem e o seu olhar aos espectáculos que os envolvem. Tal como o filme visual não é simplesmente fotografia em movimento de um drama, e tal como a escolha e a ligação das imagens são para o cinema um meio original de expressão, de igual modo o som no cinema não é a simples reprodução fonográfica de ruídos e palavras - implica uma certa organização interna que o criador do filme deve inventar. O verdadeiro antepassado do som cinematográfico não é o fonógrafo mas a montagem radiofónica.

Isto não é tudo. Acabámos de considerar a imagem e o som em separado. Mas na verdade, a sua ligação faz mais uma vez um novo todo irredutível aos elementos que o compõem. Um filme sonoro não é um filme mudo decorado com sons e palavras que só estariam destinados a completar a ilusão cinematográfica. A ligação do som e da imagem é muito mais estreita e a imagem é transformada pela proximidade do som. Apercebemo-nos bem numa projecção de um filme dobrado quando os magros falam com voz de gordo, os jovens com voz de velho, os grandes com voz de minúsculo, o que é absurdo se, como dissemos, a voz, o perfil e a personalidade formarem um todo inseparável. Mas a união entre som e imagem não se faz apenas em cada personagem, faz-se no filme todo. Não é por acaso que num determinado momento as personagens se calam e noutro momento falam. A alternância entre palavras e silêncio é gerida para o maior efeito de imagem. Como dizia Malraux (Verve, 1940[5]) há três tipos de diálogos. Em primeiro lugar, o diálogo de exposição, destinado a dar a conhecer as circunstâncias da acção dramática. Tanto o romance como o cinema evitam-no de comum acordo. Depois, o diálogo de tom, que nos dá o estilo de cada personagem e que domina, por exemplo, em Proust, onde as personagens parecem mal construídas até ao momento em que começam a falar. A prodigalidade ou a avareza das palavras, a plenitude ou o vazio das palavras, a sua exactidão ou a sua afectação, fazem sentir seguramente mais a essência de uma personagem do que grande parte das descrições. Há pouco diálogo de tom no cinema, a presença visível do actor com o seu próprio comportamento só tem lugar excepcionalmente. Por último, há um diálogo de cena que nos apresenta o debate e o confronto entre as personagens, é o diálogo principal no cinema. Porém, está longe de ser constante. No teatro fala-se sem parar, mas não no cinema. “Nos últimos filmes, dizia Malraux, o encenador passa para o diálogo depois de partes longas de mudo exactamente como um romancista passa para o diálogo depois de partes longas de narrativa”. A distribuição dos silêncios e do diálogo constitui, deste modo, para lá da métrica visual e da métrica sonora, uma métrica mais complexa que sobrepõe as suas exigências às das duas anteriores. Para ficar completo, será ainda necessário analisar o papel da música neste todo. Diremos apenas que se deve incorporar e não justapor-se. Portanto, não deve servir nem para preencher os buracos sonoros nem para comentar de um modo exterior os sentimentos e as imagens, como acontece em tantos filmes em que a tempestade da cólera desencadeia a tempestade de metais, e em que a música imita laboriosamente o som de passos ou a queda o cair de uma moeda no chão.  Intervirá para marcar uma mudança de estilo no filme, por exemplo, a passagem de uma cena de acção para o “interior” da personagem, para uma recordação de cenas anteriores ou para a descrição de uma paisagem; de um modo geral, acompanha e contribui para a efectivação de, como disse Jaubert[6], uma “ruptura no equilíbrio sensorial”. Por último, não é preciso que ela seja um meio de expressão justaposto à expressão visual, mas que, “por meios rigorosamente musicais-ritmo, forma, instrumentação, - ela recrie, na matéria plástica da imagem, uma matéria sonora, através de uma misteriosa alquimia de correspondências que deverá ser o próprio fundamento do trabalho de compositor de filmes; que ela por último torne fisicamente sensível o ritmo interno da imagem, sem deixar de traduzir o conteúdo sentimental, dramático ou poético”(Jaubert). A palavra, em cinema, não está encarregue de acrescentar ideias às imagens nem a música, sentimentos. O conjunto diz-nos algo de muito preciso que não é nem um pensamento nem uma recordação dos sentimentos da vida.

O que significa, o que quer então dizer o filme? Cada filme conta uma história, isto é, um certo número de acontecimentos que provocam as personagens e que também podem ser contados em prosa, como acontece no argumento a partir do qual o filme é feito. O cinema sonoro, com o diálogo muitas vezes invasor, completa a nossa ilusão.     Concebe-se portanto frequentemente o filme como representação visual e sonora, a reprodução tão fiel quanto possível de um drama que a literatura não pode evocar senão por palavras e que o cinema tem a sorte de poder fotografar. O que prolonga o equívoco é haver de facto um realismo fundamental no cinema: os actores devem representar naturalmente, a encenação deve ser tão verossímil quanto possível porque, diz Leenhardt, “o poder da realidade que provém do ecrã é tal que a mínima estilização destoará”. Mas isso não quer dizer que o filme esteja destinado a nos fazer ver e ouvir aquilo que veríamos e ouviríamos se assistíssemos na vida à história que nos conta, nem, por outro lado, a nos sugerir, na forma de uma história edificante, qualquer concepção geral da vida. O problema que encontramos aqui, já a estética tinha encontrado a propósito da poesia ou do romance. Num romance há sempre uma ideia que se pode resumir em poucas palavras, um argumento com algumas linhas. Há sempre num poema alusão às coisas ou às ideias. E, deste modo, o romance puro, a poesia pura, não têm simplesmente como objectivo de dar significado a estes acontecimentos, a estas ideias ou a estas coisas porque então o poema poderia-se traduzir exactamente em prosa e o romance não perderia nada ao ser resumido. As ideias e os acontecimentos não são senão os materiais da arte e a arte do romance consiste na escolha do que se diz e do não se diz, na escolha das perspectivas (um capítulo vai ser escrito do ponto de vista de tal personagem, outro do ponto de vista de outra), no tempo variável da narração; a arte da poesia não consiste em descrever didacticamente as coisas ou em expor ideias, mas a criar uma máquina linguística que, de um modo quase infalível, coloca o leitor num certo estado poético. De igual modo, há sempre num filme uma história e, por vezes, uma ideia (por exemplo, em L'Etrange sursis: a morte só é terrível para quem não a consentiu[7]) mas a função do filme não é de nos dar a conhecer acontecimentos ou a ideia. Kant diz com profundidade que no conhecimento a imaginação trabalha para o entendimento ao passo que na arte o entendimento trabalha para a imaginação. Isto é: a ideia ou os acontecimentos prosaicos só existem para darem ao criador a ocasião para lhes procurar atributos sensíveis e de aí traçar o monograma visível e sonoro.  O sentido de um filme está incorporado no seu ritmo como o sentido de um gesto é imediatamente legível nesse gesto e o filme não quer dizer outra coisa senão ele próprio. A ideia está aqui deixada no seu estado original, ela emerge da estrutura temporal do filme como num quadro da coexistência das suas partes. É a felicidade da arte de mostrar como algo ganha significação,  não por alusão a ideias já formadas e adquiridas, mas pela disposição temporal ou espacial dos elementos. Um filme significa, como vimos anteriormente, o que uma coisa significa: ambos não se referem a um entendimento separado mas dirigem-se ao nosso poder de decifrar tacitamente o mundo ou os homens e de coexistir com eles. É verdade que, no quotidiano da vida, perdemos de vista este valor estético da mínima coisa percepcionada. Também é verdade que na realidade a forma percepcionada nunca é perfeita, há sempre o desfocado, defeitos e como que um excesso de matéria. O drama cinematográfico tem, por assim dizer, um grão mais cerrado que os dramas da vida real, passa-se num mundo mais rigoroso que o mundo real. Mas, por último, é através da percepção que podemos compreender a significação do cinema: não se pensa o filme, percepciona-se.

Eis porque a expressão do homem pode ser tão surpreendente no cinema: o cinema não nos dá, como o romance o fez por muito tempo, os pensamentos do homem, ele dá-nos a sua conduta ou o seu comportamento, mostra-nos directamente este modo especial de estar no mundo, de lidar com as coisas e com o mundo que é visível nos gestos, no olhar, na mímica e que define, com evidência, todas as pessoas que conhecemos. Se o cinema nos quiser mostrar que uma personagem tem vertigens não deve tentar mostrar a paisagem interior da vertigem como Daquin em Premier de Cordée[8] e Malraux em Sierra de Teruel[9]quiseram fazer. Sentiremos melhor a vertigem quando vendo-a do exterior, vendo o corpo desequilibrado que se torce num rochedo ou a esta marcha hesitante que tenta adaptar-se a não sabemos que transtornos do espaço. Tanto para o cinema como para a psicologia moderna, a vertigem, o prazer, a dor, o amor, o ódio, são comportamentos.

Esta psicologia e as filosofia contemporâneas tinham como característica comum apresentar-nos, não o espírito e o mundo, cada consciência e os outros, como nas filosofia clássicas, mas a consciência lançada no mundo, sujeita ao olhar dos outros e aprendendo através deles como ela é. Boa parte da filosofia fenomenológica ou existencial consiste na admiração com esta inerência do eu no mundo e do eu ao outro, em nos descrever este paradoxo e esta confusão, em fazer ver a ligação do sujeito e do mundo, do sujeito e dos outros, em vez de a explicar como o fizeram os clássicos com alguns recursos ao espírito absoluto. Portanto, o cinema está particularmente apto a manifestar a união do espírito e do corpo, do espírito e do mundo e a expressão de um no outro. Eis porque não é surpreendente que a crítica possa evocar a filosofia a propósito de um filme. Numa crítica sobre Le défunt récalcitrant [10], Astruc  fala do filme em termos sartrianos: o morto, que sobrevive ao seu corpo e é obrigado a habitar noutro, permanece o mesmo para si mas é outro para o outro e não fica em repouso até que o amor de uma rapariga  o reconheça através do seu novo envólucro e seja restabelecida a concordância do para si e do para o outro. A este propósito, Le Canard enchaîné [11]zanga-se e quer enviar Astruc para as suas investigações filosóficas. A verdade é que os dois tinham razão: um, porque a arte não é feita para expôr ideias, e, o outro, porque a filosofia contemporânea não consiste em encadear conceitos mas a descrever a mistura da consciência com o mundo, o seu ajuste num corpo, a sua coexistência com os outros e que este sujeito é, por excelência, cinematográfico.

Se, por último, nos interrogarmos o porquê desta filosofia se desenvolver justamente na era do cinema, evidentemente que não deveremos dizer que o cinema provenha dela. O cinema é, em primeiro lugar, uma invenção técnica onde a filosofia não tem nada a ver. Mas, não deveremos continuar a dizer que esta filosofia vem do cinema e que o traduz no plano das ideias. Uma vez que podemos fazer um mau uso do cinema e o instrumento técnico, uma vez inventado, deve ser retomado por uma vontade artística, e como que inventado uma segunda vez, antes que cheguemos a fazer verdadeiros filmes. Se, por conseguinte, a filosofia e o cinema estão de acordo, se a reflexão e o trabalho técnico vão no mesmo sentido, é porque o filósofo e o cineasta têm em comum um certo modo de ser, uma determinada perspectiva do mundo, a de uma geração. É mais uma ocasião para verificar que o pensamento e as técnicas correspondem-se e que, de acordo com as palavras de Goethe, ”o que está no interior, também está no exterior”.

In Sens et non-sens, Paris, Éditions Nagel, 1966, pp 96-106. 


[1] Vsevolod Pudovkin (1893-1953), realizador soviético de filmes como A Mãe (1926) e Tempestade sobre a Ásia (1928).

[2] Roger Leenhardt (1903-1985) foi um realizador, produtor, argumentista e crítico de cinema francês conhecido como pai espiritual da nouvelle vague.

[3] Esprit, 1936. [Trata-se do texto “ Petite école du spectateur : le rythme cinématographique " escrito por Roger Leenhardt (Fevereiro de 1936)]

[4] Em francês, no original. Filme musical de 1929 realizado por Harry Beaumont que arrecadou o Oscar de Melhor Filme.

[5] Em 1940 André Malraux publica pela primeira vez na a revista francesa Verve o texto Esquisse d'une psychologie du cinéma, um texto incontornável onde compara o cinema a outras artes, como o romance e o teatro, defendendo que, relativamente à era do sonoro, o som não veio estragar o cinema mudo, antes pelo contrário, reinventou-o.

[6] Esprit, 1936. [Trata-se do artigo “Petite école du spectateur : le son au cinéma” (Maio de 1936) escrito por Maurice Jaubert (1900-1940), compositor francês autor de bandas sonoras, entre as quais, Zero de conduite e  L'Atalante  de Jean Vigo]

[7] On borrowed time (1939), filme de Harold S. Bucquet.

[8] Filme de Louis Daquin de 1944 que adapta o romance de Roger Frison-Roche e filmado no Mont-Blanc.

[9] Filme de 1945 sobre a guerra civil espanhola que adapta L'Espoir.

[10] Filme de Alexander Hall, Here comes Mr.Jordan (1941).

[11] Semanário satírico francês fundado em 1915 e ainda em circulação. 


2. Comentário

A grande influência para a reflexão sobre o cinema foi, não só André Malraux e as análises de base psicológicas sobre a técnica cinematográfica e as categorias da imagem, som, montagem, etc, que Malraux expõe em L'esquise d'une psychologie du cinéma, escrito em 1940, mas também Roger Leenhardt e o texto escrito para a Esprit em 1936, “Le rythme cinématographique”. Através da base interpretativa da psicologia Gestalt, Merleau-Ponty afirma que, em primeiro lugar, o filme não é uma soma de imagens mas uma forma temporal, isto é, o sentido de cada imagem é criado pela imagem que a antecede ou sucede porque, isolada, a imagem não tem sentido nenhum. Igualmente importante na criação do sentido é, citando Leenhardt, a duração de cada imagem. De igual modo, há uma forma sonora do filme no sentido em que, o som, o diálogo ou o ruído não são a mera reprodução fonográfica das imagens registadas mas são uma unidade da montagem sonora e visual formando um todo indivisível.

A problemática enunciada por Merleau-Ponty no encerramento do seu discurso na conferência sobre a relação entre cinema e filosofia, é bastante pertinente e que surpreende pelo facto de ter sido ignorada por grande parte dos filósofos contemporâneos a esta mesma era do cinematográfico. Mas, Merleau-Ponty, colocou a questão: qual a relação entre filosofia e cinema?; haverá uma influência da filosofia no nascimento do cinema, ou terá sido o cinema a influenciar a própria viragem filosófica no século XX? Segundo o autor, o mais sensato será afirmar a mútua interferência motivada pelo que será uma partilha geracional de uma perspectiva  do sujeito e do mundo. Ou seja, para Merleau-Ponty, não há uma influência conceptual sobre a criação do cinema porque este é um conjunto de técnicas, e não um modo de filosofar, o cinema não é expressão dos pensamentos humanos mas expressão dos comportamentos, do modo de estar no mundo. Se o contrário ocorresse, então o cinema poderia ser uma demonstração por imagens dos argumentos ou ideias filosóficas subjacentes; o cinema poderia ser um meio propício à divulgação massiva de ideias e conceitos filosóficos através das imagens. Mas, o filósofo não é cineasta, da mesma forma que o cineasta não é filósofo. Caso o cinema tenha influenciado a própria filosofia, esta não será uma forma de organizar ou conceptualizar as diversas imagens que perfazem o todo fílmico. Por estes motivos, as análises psicológicas do cinema feitas por Merleau-Ponty não se distanciam o suficiente do behaviourismo para poderem alcançar outras possibilidades como, por exemplo, o cinema como veículo de conhecimento, de partilha de ideias. Diz o autor  que “o cinema não nos dá, como o romance o fez por muito tempo, os pensamentos do homem, ele dá-nos a sua conduta ou o seu comportamento” (1966: 104).

Através desta conferência, e levando ao extremo as reflexões de Merleau-Ponty, compreendemos melhor que, entre a reflexão filosófica e a técnica cinematográfica, não há uma anterioridade de um sobre o outro, mas uma coexistência: o cinema revela e torna visível o modo de pensarmos, as relações com os outros e com o mundo, e a filosofia permite reflectir sobre o que se apresenta nas imagens, a sua visibilidade. Há, neste sentido, uma relação quiasmática (chiasme) entre técnica e pensar que possibilita que o olhar que vê se encontre a si mesmo como visível.  



IV. BIBLIOGRAFIA


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1.1. Póstumo

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2. Sobre a estética em Merleau-Ponty

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