Sergei EISENSTEIN
(Jorge Gonçalves)



I. APRESENTAÇÃO

II. TESES ESSENCIAIS



I. APRESENTAÇÃO


Eisensten nasceu em Riga (Letónia) em 23 de Janeiro de 1898 e morreu em 10 de Fevereiro de 1948 em Moscovo. Era filho de um engenheiro civil e de uma mãe de família abastada. Cedo revelou as suas tendências artísticas mostrando interesse pelo teatro, artes plásticas e cinema. Revelou-se também um leitor desenfreado de diversos escritores e autores teóricos, em voga na sua época (como Freud, Dostoyeveski, Óscar Wilde, Schopenhauer, Zola). No entanto, seguindo os conselhos do pai, com quem vivia depois a separação dos pais, ingressou no curso de engenharia civil. Desta sua formação ficou-lhe o gosto pelo rigor científico, que aplicou no seu trabalho de cineasta.

A Revolução de Outubro veio alterar decisivamente a sua vida. Inicialmente mostrou-se um tanto afastado, mas em 1918 abandona o curso de engenharia e alista-se no exército vermelho, tomando parte na Guerra Civil. É durante este período que começa a sua carreira, inicialmente como cenógrafo no teatro Prolekult, cujo objectivo era criar uma arte de origem proletária. Aí estuda as teorias da montagem de Meyerhold, grande teórico da vanguarda teatral, e entra em contacto com o cinema.



II. TESES ESSENCIAIS


1. Arte e revolução

Os primeiros anos da Revolução Russa foram marcados por uma intensa actividade artística. Desenvolveu-se uma arte revolucionária que o Partido procurou orientar no sentido de espalhar a revolução, num país onde a maioria da população era analfabeta. Eisenstein também colocou as suas capacidades artísticas ao serviço da revolução. Para ele, como para diversos outros artistas, a arte revolucionária não era apenas aquela cujos temas eram revolucionários. A própria forma devia ser inovadora pois a Revolução Russa tinha tentado criar algo de único na História e por isso as velhas formas de expressão já não eram adequadas.

Nem sempre porém, foi esse o entendimento do Partido e Eisenstein teve alguns problemas com o poder político. Nomeadamente, foi acusado de excessivo formalismo e de criar uma arte um tanto elitista, não facilmente digerível pelas massas. Os conflitos agravaram-se na época em que José Estaline dirigiu o Partido. No entanto, mesmo durante este período Eisenstein nunca cortou completamente com as ideias do socialismo soviético, tendo inclusive produzido duas obras importantes: Alexander Nevski e Ivan, o Terrível.  


2. Influências teóricas

Eisenstein teorizou proficuamente sobre as suas intuições estéticas. Ao mesmo tempo que realizava filmes reflectia sobre o cinema e sobre a sua relação com as transformações sociais. Nesta sua faceta lançou mão de diversas teorias vanguardistas na época, partindo das suas intuições estéticas. Refiro aqui algumas das suas influências teóricas mais marcantes. 

Apesar de Pavlov se ter oposto firmemente à revolução, os soviéticos tomaram-no como o seu psicólogo mais influente. O que os atraía era o papel do meio social e da neurologia (em acordo com o materialismo) na explicação do comportamento humano, em detrimento da consciência individual e da introspecção. Uma consequência da sua teoria é a plasticidade do comportamento: é possível “descondicionar” os indivíduos e promover novos condicionamentos. Os pavlovianos têm como principal conceito explicativo o “reflexo” ou “reacção”. Repare-se no entanto, que eles pretendem explicar a totalidade do comportamento humano, incluindo as funções superiores. A estética transforma-se assim nos “reflexos estéticos”, que podem ser explicados como quaisquer outros em termos de uma complexa combinatória de reflexos inatos e adquiridos. Eisenstein concordou muito com estas doutrinas, sobretudo no início da sua carreira, como é visível no seu conceito de “montagem de atracções” (ver à frente).

A influência da dialéctica (na versão de Marx, Lenine e Engels) é explícita no trabalho teórico de Eisenstein. Os seus conceitos de conflito, orgânico e patético, revelam essa influência. Para ele a dialéctica não era uma ideologia (como hoje tendemos a perspectivá-la) mas uma visão do mundo fundamentada nas últimas descobertas científicas. A obra de arte para ser autêntica e orgânica deve reger-se pelos mesmos princípios que regem a Natureza e a História.

Segundo a dialéctica a realidade não é dada de modo imediato e empírico, sendo necessário progredir para o nível dos conceitos. A natureza não se mostra na observação simples. Por exemplo, a teoria atómica implica uma construção intelectual. Do mesmo modo, as leis da história não estão à vista, é necessário um trabalho de análise para descobrir o segredo da evolução histórica. Para Eisenstein o cinema participa nesse trabalho de desocultação da realidade e por isso ele não se interessa pelo realismo, mas antes pelo verdadeiro materialismo.

A dialéctica enunciou certas leis que estarão presentes em todos aspectos da realidade. Elas são aquilo que permanece num mundo onde tudo está em transformação: lei da mudança dialéctica, lei da acção recíproca, lei da contradição, lei da transformação da quantidade em qualidade (progresso por saltos). Na elaboração dos seus filmes e das suas teorizações Eisenstein mostra que estudou largamente estas leis. A lei da contradição foi a que mais o influenciou. Segundo esta lei as coisas têm um autodinamismo que as leva a evoluir de determinado modo. Este modo é o da transformação de cada coisa no seu contrário. A partir de uma realidade unitária há uma divisão por salto no contrário e de nova uma recomposição numa realidade mais vasta. 

Outra grande influência, agora já no plano directamente artístico, foi o encenador teatral Meyerhold. Ele desenvolveu um método conhecido por bio-mecânica que procurava juntar ciência e arte, tão ao agrado de Eisenstein. Opunha-se ao naturalismo, psicologismo e misticismo de Stanislavski, que haveria de se tornar no modelo dominante na estética do realismo socialista[1]. Buscou apoio teórico em Pavlov e em William James (teoria das emoções). Segundo o método bio-mecânico o actor não tinha de ser necessariamente um profissional, abrindo deste modo a possibilidade de ser recrutado no proletariado. O critério era antes a sua parecença fisionómica com a personagem pretendida. O que se exigia era um rigoroso treino em que o corpo era concebido como uma máquina que reage rapidamente a estímulos. O teatro além disso incluía influências do circo, da commedia dell’ arte, do teatro oriental e do teatro de fantoches. Estas concepções irão influenciar a teoria da tipagem e a montagem de atracções de Eisenstein.

O norte-americano David Griffith foi o primeiro a dar à montagem uma importância superior. A montagem é a combinação e o arranjo das imagens e por isso ela existe em todo o cinema. Porém, Griffith compreendeu que trabalhando sobre a montagem poderia conseguir efeitos expressivos ao atribuir significado à interacção dos diversos pontos de vista (planos e ângulos). Tal como os dialécticos ele usou o conceito de organismo como um todo que é mais que o somatório das partes. Simplesmente não concebia esse todo como uma unidade de contrários, mas como um conjunto de partes diferenciadas. Tomando um exemplo actual, os países ricos e os países pobres no sistema mundial seriam duas partes distintas, não engendradas pelo mesmo movimento do capitalismo como pensam os dialécticos. Então Griffith vai conceber três tipos de montagem. Na montagem alternada paralela temos duas partes que se sucedem segundo um ritmo. Na inserção do grande plano há uma interacção entre o todo e a parte (por exemplo, mostrar a perspectiva de um soldado na batalha). Na montagem concorrente ou convergente há uma alternância de duas acções que vão convergir no final.

Eisenstein aproveitou muito das ideias de Griffith sobre montagem mas criticou-as e transformou-as de acordo com o sistema da dialéctica.

[1] Enquanto que Meyerhold acabou por ser fuzilado por ordem de Estaline.


3. Teoria da montagem

Para Eisenstein o cinema é essencialmente fragmento e montagem. Se o objectivo principal do cinema é agir sobre a mente dos espectadores de modo a levá-los a reconhecer a realidade do seu papel na realidade sócio-histórica, então as formas de montagem que o realizador pesquisa são aquelas que conduzem à consecução daquele objectivo. Eisenstein varia, entretanto, um pouco as suas ideias ao longo da sua carreira de acordo com a ideia que faz da psicologia do espectador. Inicialmente ele concebe o espectador como uma máquina de reflexos e procura determinar cientificamente como ter impacto sobre essa máquina. Nos textos posteriores ele vai dando mais lugar à subjectividade e então passa a compreender o processo mais em termos da consciencialização pelo espectador através da emoção. Esta emoção será essencialmente um êxtase, ou seja, um “sair para fora de si” um “saltar na cadeira”, um estado que se apodera do indivíduo quando se sente pertencente a um momento transcendente da História. O intuito de calcular cientificamente todos os efeitos estéticos vai-se esbatendo se bem que nunca tenha sido abandonado por Eisenstein. Simplesmente ele torna-se mais flexível quando dá maior valor à subjectividade e criatividade do espectador, com quem o realizador procura uma comunhão de sentido.

A montagem consiste na disposição e arranjo de bocados unitários de filme que Eisenstein designa como fragmentos. A combinatória de fragmentos produz um novo sentido, como o demonstraram as experiências do teórico Kuleshov. Ele associou a mesma imagem do rosto de um actor com outras três imagens diferentes: um prato de sopa, um caixão de criança e uma provocante mulher seminua. Os espectadores sentiram que ele estava a expressar fome, dor e desejo sexual, respectivamente. Eisenstein vai desenvolver muito esta ideia criando associações entre os fragmentos para provocar efeitos previamente estudados nos espectadores.

O fragmento é além disso decomposto em diversos elementos internos (parâmetros): a luminosidade, o contraste, a duração, a cor e outros. Eisenstein joga com as possíveis combinações entre esses parâmetros, expressando visualmente ideias. Como cada fragmento tem diversos parâmetros a associação de fragmentos permite diversos arranjos entre os parâmetros.

As relações entre fragmentos e parâmetros são sobretudo de conflito. Para Eisenstein o conflito é o princípio fundamental que subjaz às obras de arte. O conflito está na base da metodologia da arte, no caso do filme da montagem, mas não só. A arte revela as contradições e os conflitos sociais. A própria existência da arte já resulta do conflito entre o que é dado por natureza e o poder inventivo do homem.


4. Métodos de montagem

Eisenstein codificou diversos métodos de montagem que encontrou na sua actividade criativa. Ainda ligado ao teatro e fortemente influenciado por um referencial teórico pavloviano, elaborou o conceito de montagem de atracções. A fim de criar um estado emocional no espectador de modo a lhe incutir uma ideia o realizador introduz imagens de forte impacto visual, que podem ser do tipo teatral, circense ou plástico. Estas imagens estão associadas com a narrativa mas podem não pertencer ao seu campo de realidade. Por exemplo, para dar a ideia que os trabalhadores são “carne para canhão” no filme A Greve, aparece uma cena de um matadouro, que não tem a ver com o lugar onde decorre a acção (uma fábrica). Da associação das imagens supervém um conceito, que fica fortemente impresso no sistema nervoso do espectador.

No seu artigo Os Métodos de Montagem Eisenstein apresenta diversos métodos num grau crescente de complexidade. Estes métodos podem apresentar-se combinados na mesma obra, pois interessa não perder de vista que ele concebe a obra como uma totalidade dinâmica onde as partes se inter-relacionam. A montagem métrica é o tipo mais primitivo e mecânico, baseando-se puramente no comprimento dos fragmentos e na proporção que se mantém na sequência de fragmentos. Eisentein compara o processo ao compasso musical consistindo a realização na repetição desses “compassos”. Para obter um efeito de tensão diminui-se o tamanho dos fragmentos mantendo a proporção entre eles, produzindo uma aceleração mecânica. Isto provoca no espectador uma poderosa força motivadora que chega a fazê-lo ter movimentos imitadores na cadeira onde está sentado.

Já na montagem rítmica não é apenas a métrica dos fragmentos que importa mas também o seu conteúdo. Eisenstein joga com estes dois factores com o comprimento absoluto dos fragmentos e com a realidade que está neles. Ele dá o exemplo da famosa sequência conhecida por “escadaria Odessa”, do Couraçado Pothemkine, onde a fim de criar tensão ele dessincroniza o ritmo dos passos dos soldados em relação ao corte métrico. O efeito provocado no espectador, por este tipo de montagem, é igualmente designado por Eisenstein como emotivo-primitivo, embora o movimento seja aqui mais subtilmente calculado.

Na montagem tonal, Eisenstein considera que a construção métrica simples é elevada a uma categoria de movimento com uma significação superior. O conceito de movimento engloba todas as sensações do fragmento, baseando-se a montagem no que o realizador chama o “som emocional” ou o “tom geral” do fragmento. Neste tipo de montagem há um jogo de oposições entre a dominante tonal básica e a dominante rítmica secundária. Por exemplo, na “sequência da neblina” (Couraçado Pothemkine) as variações ópticas da luz são dominantes, sendo acompanhadas pelas variações rítmicas do movimento das águas. Eisenstein não desiste de procurar estruturas matemáticas também na montagem tonal, pois considera que os seus elementos, p.e., o grau de vibração da luz, podem ser perfeitamente quantificados. O efeito produzido no espectador é descrito como emotivo-melódico, pois aí o movimento é como uma vibração emotiva de ordem mais elevada.

A montagem atonal ou harmónica, resulta do desenvolvimento da anterior, quando se considera o apelo de todos os elementos do fragmento. Eisenstein continua a usar analogias musicais: os harmónicos são sons associados a um som principal que só aparecem quando a música é realmente tocada. Do ponto de vista da acção sobre o espectador, ele descreve este tipo de montagem como “um fluxo fresco de puro fisiologismo”, que remete para a força motivadora do primeiro tipo, mas agora num nível de intensificação mais elevado.

Na montagem intelectual o conflito-justaposição de sons harmónicos processa-se no nível intelectual e não já meramente fisiológico. No entanto, Eisenstein não considera o processo como essencialmente diferente pois os princípios são os mesmos nos níveis superiores do sistema nervoso, reflectindo a influência da escola reflexologista pavloviana. Aqui joga-se com ideias e conceitos como é exemplo a “sequência dos deuses” em Outubro, onde o conceito de Deus é reduzido ao de um totem primitivo. No entanto, Eisenstein afirma que isto não é ainda o cinema intelectual que ele busca como sendo aquele que resolveria “o conflito-justaposição dos harmónicos fisiológicos e intelectuais”.

Um último método de montagem é a montagem vertical onde Eisenstein aborda a concepção do Todo dialéctico do filme, incluindo o som e a cor, organizando as suas diversas linhas (dramática, temática, sonora, plástica etc.).


5. O orgânico e o patético

O filme é concebido como um organismo que artificialmente reproduz a orgânica da natureza. Por isso emociona os humanos que também são parte da natureza. Autor, natureza e espectador estão em comunhão, na obra de arte bem sucedida. O organismo é um todo em movimento que é formado por partes às quais confere ao mesmo tempo sentido. Eisenstein pensa que é possível determinar regularidades matemáticas no filme, que espelham regularidades mais gerais, presentes em toda a arte e na natureza. Assim, ele determina a secção de ouro que se situa a 2/3 do final, mas que também se pode determinar no sentido inverso (começando do fim do filme). Esta secção de ouro marca um ponto de cesura e viragem, de passagem para o contrário no filme. É também a medida que permite determinar a regularidade da evolução, ou seja a espiral logarítmica. A evolução realiza-se em espiral, que dizer, há repetições, passagens pelos mesmos lugares mas num nível superior. Por exemplo, no Couraçado Pothemkine a cena em que os marinheiros fazem apelo ao lado fraterno dos soldados do poder que os vão fuzilar (“Irmãos”) repete-se no apelo aos marinheiros da esquadra. Contudo, está-se num nível mais avançado do processo revolucionário. A espiral segue uma regularidade matemática determinada pela secção de ouro.

Os princípios que regem o todo do filme verificam-se também em cada uma das partes. Também nelas encontramos a secção de ouro e a evolução em espiral. No Couraçado Pothemkine em cada parte vai-se repetindo a estrutura do todo. Esta consiste num processo que começa com um protesto de um grupo de marinheiros num couraçado e que se vai progredindo em espiral a todo o couraçado, à cidade, à esquadra e percebe-se que transborda o ecrã para produzir o sentimento de fraternidade revolucionária. Também em cada parte há a passagem de uma situação para a sua contrária num ponto determinado pela secção de ouro.

Nestes pontos de passagem para o contrário acontece o patético. Eisenstein define-o pelos efeitos no espectador. Este é tomado por um estado de êxtase, por uma vontade de “saltar na cadeira”. Não se trata contudo da produção da emoção pela emoção mas de uma tomada de consciência e de uma elevação moral. O espectador compreende que chegou o momento de ser requisitado a tomar parte na História e cumprir o seu papel contra a injustiça social. Eisenstein pesquisa os modos de produção do patético mas adverte que não há nenhuma técnica a priori de o conseguir, embora possam existir linhas orientadoras.


6. Conclusão

O sistema de Eisenstein dá ao cinema um papel preponderante na compreensão da realidade e da sua modificação. O cinema pode revelar a natureza oculta das coisas e pode transmitir ideias e conceitos através da acção sobre as emoções dos espectadores. Torna-se assim um meio privilegiado de comunicação com públicos diversificados. Sendo o movimento a sua própria natureza, o cinema torna visível a transitoriedade do mundo, ao mesmo tempo que aponta direcções para a acção humana.